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quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Nossa casa deve ser o melhor lugar do mundo

Por Fabrício Carpinejar

SOMOS A PRÓPRIA CASA

A casa reproduz a nossa insatisfação. Nunca estamos
plenamente felizes. Sempre existe algo por fazer, uma
chance de colorir a planta original.

Você pode ter amplos espaços, mas não contar com
garagem. Ou você pode ter quartos gigantescos e um
banheiro apertado.

Existirá um limitador, um ponto fraco, um defeito que
baixará o valor do imóvel. Há apartamentos
majestosos sem paisagem nenhuma, por sua vez 
há quitinetes de envesgar o proprietário com belezas 
transbordando das janelas.  Já vi apartamentos 
encravados em encantadoras áreas verdes, porém 
também ameaçados pelo deslizamento.
Mesmo as mansões desfrutam de contrariedades,
ou são muito longe ou excessivamente protegidas e 
afastadas do aeroporto.

Algo dentro da casa não corresponderá as expectativas,
só que termina compensada pelo resto. Assim como
você deixa passar um traço falho em sua personalidade 
em nome do conjunto.

A casa é um jeito de aceitar a imperfeição e de conviver
com os defeitos.

Ou você pode melhorar o apartamento para vender ou
pode melhorar o apartamento para morar melhor - 
e isso já expõe a sua visão de mundo. Ou você pode 
ter um  lugarzinho apenas para dormir ou pode cultivar 
a solidão com o capricho das estantes e plantas.

Sou a minha casa, de algum jeito. Faz sentido. A cozinha
é pequena e colada na área de serviço, traduz a minha 
inabilidade com as panelas. Queria desfrutar de uma 
estrutura de chef e um mundaréu de panelas nas
paredes, mas me resignei a um espaço absolutamente 
funcional. Por incrível que pareça, os amigos farejam o 
meu ponto fraco e preferem ocupar a estreita cozinha
durante as festas. Nem reclamo, nem mais mando o
povo sair.

Já a sala, em nítida oposição, é um estaleiro. Revela a
minha intensa sociabilidade e a alegria de anfitrião. 
Evidente que gosto do enfrentamento e dos longos 
debates, simbolizado pelos sofás laterais, um de frente 
ao outro. As visitas são obrigadas a se encarar.

O lar é a minha cara, extravasa o meu temperamento.
Bate o sol de tarde clareando as mesas e cadeiras e
abro os janelões para receber ventos engarrafados 
de esquina.

É um apartamento de frente e vejo quem chegou mais
espiando pelas cortinas do que atendendo o interfone.

Moro numa biblioteca, mas não abro mão da nostalgia
do campo. A churrasqueira está no centro do escritório  
- não na varanda como é o costume. Diz muito sobre o 
meu orgulho das tradições gaúchas. Enfeito as 
prateleiras com brinquedos de madeira e jogos antigos 
como pião e cinco marias, o que evidencia que não 
deixei completamente a infância. Os quartos são do 
mesmo tamanho  - não consigo tirar vantagem sobre 
as crianças. Não abdico de um longo corredor entre as 
portas, toda residência que se preza possui uma galeria 
de fotos e quadros para os seus fantasmas.

Quando entro em uma casa estou conhecendo a alma
de alguém e já vou preparado para não tirar nada do 
lugar. Vá que mexa em uma dor secreta ou um nervo 
inflamado.



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